Lei 14.790/2023 e Portarias SPA/MF: Impacto no Design das Apostas Digitais
Introdução
O mercado brasileiro de apostas digitais vive um ciclo de expansão acelerada. A Lei 14.790/2023 e as Portarias SPA/MF nº 1.231/2024 e nº 1.207/2024 introduzem um arranjo normativo que desloca o debate do “conteúdo” da aposta para a “arquitetura” da interação, aproximando o Brasil das discussões internacionais sobre padrões obscuros (dark patterns).
Este white paper examina como esse arcabouço enfrenta práticas de design persuasivo que restringem a autonomia decisória.
Art. 4º. § 1º É proibida a utilização nos sistemas de apostas de artifícios que dificultem a opção livre e informada do apostador por quaisquer dos mecanismos previstos na regulamentação, inclusive o uso de desenho de produtos tecnológicos que retardem a livre opção do apostador. (Portaria SPA/MF 1231/2024)
2. Taxonomia dos dark patterns em apostas digitais
A literatura especializada tem identificado dimensões recorrentes de manipulação em interfaces:
assimetria de esforço entre caminhos pró-empresa e pró-usuário;
dissimulação dos efeitos do fluxo;
restrição artificial de opções;
influências enganosas por framing, âncoras e defaults;
ocultação de informação relevante.
Em mercados de apostas, essas dimensões tendem a se manifestar em cadastros mais fluidos que cancelamentos, em limites e pausas colocados atrás de passos adicionais, em odds e retornos exibidos de modo saliente enquanto perdas e posição líquida permanecem pouco evidentes, e em gatilhos de urgência e prova social que deslocam usuários para “hot states” decisórios. A contribuição normativa brasileira, tipifica comportamentos de interface que operam por obstáculos da escolha livre, oferecendo um padrão de avaliação compatível com a vedação a dark patterns.
3. Evidências empíricas no Brasil e no exterior
No exterior, auditorias comportamentais conduzidas pela Behavioural Insights Team (BIT) rastrearam a jornada do usuário em 10 operadores, constatando que:
abrir uma conta é substancialmente mais fácil do que encerrá-la;
definir um limite de depósito exige, em média, mais etapas do que realizar uma aposta;
defaults e âncoras monetárias acima do mínimo empurram para depósitos e stakes mais altos;
mensagens e elementos salientes induzem repetição imediata de apostas;
informações críticas, como posição líquida e recibos de aposta, são pouco evidentes
a acessibilidade das páginas de “gambling management” mostrou-se inferior à de áreas promocionais.
No Brasil, um estudo empírico recente do NPD Techlab/USP, apresentado ao STF, sobre dez plataformas autorizadas documentou:
ocultação de informações cadastrais nacionais exigidas pelo art. 15, Lei 14.790/2023;
advertências etárias discretas e posicionadas no rodapé em 90% da amostra, em contraste com banners promocionais chamativos;
cadastros com baixa verificação robusta de identidade ao lado de cancelamentos com quase o dobro de etapas;
instruções de jogo relegadas a páginas internas, extensas, às vezes apenas em inglês;
uso de prova social, contadores regressivos e narrativas de aposta como solução financeira, tudo enquanto a seção de jogo responsável permanece pouco proeminente e mais custosa cognitivamente.
4. Análise comparativa: normas vs. práticas
A comparação entre regras e realidade mostra um descompasso estrutural. O § 1º do art. 4º da Portaria 1.231/2024 funciona como cláusula geral de proteção da arquitetura decisória: basta haver fricção, atraso ou opacidade que dificultem limites, pausas, autoexclusão, encerramento, saque, acesso a regras ou ao RTP para configurar infração.
1. Livre opção vs. fricção assimétrica
Lei: direito a encerrar conta e definir limites de forma simples.
Prática: definir limite de depósito exige até 3 passos a mais que apostar (BIT); cancelamento demanda contato com suporte ou depósito prévio; em média, 81% mais etapas do que abrir conta (NPD/Techlab).
Impacto: toda assimetria que torna mais difícil sair ou limitar do que apostar é artifício ilícito.
2. Transparência e informação
Lei: dados cadastrais visíveis; informação clara e sem escrita dúbia. Portaria 1.207/2024: exige clareza, contraste e estabilidade semântica de ícones e símbolos.
Prática: ocultação de CNPJ, instruções só em inglês, textos longos escondidos em menus (NPD/Techlab).
Impacto: sobrecarga cognitiva que desestimula a leitura torna-se técnica ilícita de dissuasão.
3. Publicidade
Lei: veda glamorização, probabilidades enganosas, urgência artificial, direcionamento a vulneráveis.
Prática: contadores regressivos, prova social, celebridades, slogans de “milhares de formas de ganhar” (NPD/Techlab)
Impacto: pelo § 1º, isso não é só falha publicitária, é manipulação de arquitetura contra autocontrole.
4. Design de interface e integridade informacional
Lei: botões e áreas ocultas proibidos; clareza sobre RTP, prêmios e “ilusão de habilidade” em jogos aleatórios.
Prática: ícones não rotulados, uso de moedas virtuais em vez de reais, ausência de janela de reflexão entre rodadas.(BIT e NPD/Techlab)
Impacto: saliência e âncoras visuais transformam inércia em ação pró-empresa, retardando juízo crítico.
5. Direitos do consumidor e governança do ciclo
Lei 14.790/2023: incorpora CDC e assegura histórico financeiro detalhado, encerramento simplificado, autoexclusão.
Prática: autoexclusão via chat com atendente; histórico mal rotulado; encerramento sujeito a requisitos não previstos no cadastro (BIT e NPD Techlab).
5. Sanções
A Lei 14.790/2023 prevê um arsenal sancionatório robusto, capaz de transformar práticas de design manipulativo em riscos econômicos e reputacionais de altíssima escala para os operadores.
Principais penalidades:
Multa: de 0,1% a 20% da arrecadação líquida, até R$ 2 bilhões por infração, nunca inferior à vantagem auferida.
Suspensão parcial ou total das atividades por até 180 dias.
Cassação da autorização ou extinção da permissão/concessão.
Proibição de operar novamente por até 10 anos.
Restrições específicas de modalidades de operação pelo mesmo prazo.
Relação com os dark patterns
O § 1º do art. 4º da Portaria 1.231/2024 transforma o design manipulativo em infrações sancionáveis.
📌 Síntese: as sanções tornam claro que, no setor de apostas, design virou risco regulatório de bilhões.
6. Como responder
Enfrentar os riscos dos dark patterns exige mais do que boa vontade: requer processos estruturados de auditoria e conformidade.
A Fair Design oferece uma solução sob medida para ambientes digitais regulados, como o de apostas:
Avaliação técnica das interfaces da plataforma, com foco em clareza e transparência.
Classificação de padrões manipulativos e dos riscos associados (jurídicos, reputacionais e operacionais).
Relatório detalhado, incluindo mapa de risco, recomendações de melhoria e visualizações de impacto para facilitar decisões estratégicas.
🔎 Sob medida para apostas digitais e setores regulados.